“Por que beija-flor?” (Hummingbird)
Nada é exatamente igual a alguma coisa. Uma pequena característica consegue diferenciar um ser do outro. Algumas características chamam mais atenção de uns, enquanto outras despertam o interesse de outros. Nada é igual, repito.
Houve certa noite tumultuosa na minha vida a qual jamais me esquecerei. Enchi um cálice de vinho, sentei-me isolado de todos, caneta e papel nas mãos. Compor.
Senti meu corpo sendo guiado, eu não estava em mim, eu era um mero espectador do meu corpo em ação.
Após crises familiares periodicamente perturbantes, um fim trágico de um relacionamento amoroso, após perdas quase insuperáveis e percepções de fatos extremamente traumáticos que me encarceravam num mundo para os outros, eu me sentia bem em poder me assistir por um momento. Eu sentia bem em eu ser o centro da minha atenção.
A música que eu compunha começava relatando sobre meu certo despreparo para a vida. Na última frase desta primeira estrofe, eu disse que eu desistiria. Mas algo, naquele mesmo instante, me fez ser mais específico sobre o que eu estaria desistindo, que era sobre os padrões.
Retomei a segunda estrofe com explicações da minha desistência, e a terceira eu começo a me despedir do mundo real. Queria voar. Seria impossível?
Logo veio o refrão, extremamente metafórico e codificado. Numa melodia envolvente, eu tecia as frases e as estrofes formavam-se.
Na última estrofe, aquele antes abalado já estava morto, dando lugar a outro ser.
Este novo personagem não surgiu de imediato, eu tive uma imensa participação na escolha do que me representaria daqui pra frente. Depois da letra “pronta” eu via que faltavam espaços, justamente os espaços que deveriam ser preenchidos com o nome deste novo eu.
Por exemplo, no refrão: “Fly ____________, come back home”. (Voe _______, volte para casa).
Já em sã consciência e controle de mim, olho para os lados e meu cálice de vinho estava intacto.
Peguei o papel, li o que havia escrito e me perguntei: “o que está faltando?”.
Então ergui minha mão para pegar o cálice, para quem sabe o sabor do vinho me inspirar, quando, um pouco trêmulo, eu deixei derramar vinho sobre mim. Antes que me estressasse por ter manchado minha bermuda branca, fiquei estagnado observando a forma daquela mancha. Era surreal. Era um beija-flor, que evaporara para tornar-se um borrão, na intenção de apagar quaisquer vestígios.
Preenchi os espaços em branco e mais uma vez fiquei deslumbrado com o que “eu” havia escrito. As metáforas lá expostas eram direcionadas a mim como um beija-flor.
Naquele mesmo instante levantei-me, guardei aquele papel no bolso (ainda o tenho) e fui pensar no porquê de beija-flor.
O que Deus, claro, Deus, queria com isso? Por que beija-flor, por que beija-flor?
Porque é a única ave capaz de voar para trás, metaforicamente, é a única humilde o suficiente para reconhecer seus erros tendo a chance de retornar e consertá-los.
Porque seu coração corresponde a 22% do peso de seu corpo, quão bondoso é este ser.
O beija-for é a única ave capaz de permanecer parado no ar enquanto bate as asas, estabilidade no topo.
O beija-flor é uma ave, claro! Mas das que voam, ou seja, se seguir rumo ao norte, estará indo ao encontro de Deus e sempre erguido.
Se você segurar um beija-flor impedindo seu voo, ele morreria em dez segundos, seu coração pararia de bater. Liberdade.
Beija-flores nascem de ovos, têm que quebrar as cascas duras para saírem para o mundo. Leva tempo para as penas começarem a nascer, e um pouco mais de tempo ainda para finalmente aprenderem a voar. Metaforicamente, uma fase difícil vale a pena quando a possibilidade do voo é a recompensa.
Porque o beija-flor, por refração, tem sua coloração impressionante mutável. Sua intensidade varia, assim como seus tons. E eu vejo isso como um ser inconstante, mas que carrega consigo uma beleza natural e singela em qualquer fase.
... etc
Vários “porquês”, várias justificativas! Mas a maior delas é que fui conquistado por esta ave, que para muitos é só mais uma.
Eu vi nela sua essência e ela chamou a minha atenção.
Eu renasci nela, sou um beija-flor, por que não?
Daqui pra frente, quando me perguntarem, “por que beija-flor?”, eu apenas irei sorrir e dizer: "Porque eu gosto do que eu sou!".